quarta-feira, 7 de outubro de 2009

COLETIVO CASINHA - onde a poesia rompe o estatuto da tribo

O professor Roberto da Matta, em palestra recente, chamou a atenção para o que nomeou de ‘o poder de coerção do grupo sobre o indivíduo’. Falou disso como se descrevesse um mecanismo capaz de operar forças que nos submetem a todos, inexoravelmente.
Claro, isso pode ser visto como mero conceito, distante, impessoal; dessas coisas que a gente em geral só admite nos livros. É tipo “ah, isso é verdade, deve ocorrer, mas na vida dos outros...”
No entanto, na dúvida , vale observar como tais forças operam na sociedade contemporânea e, a partir de uma visão macro, tentar ler como nos atingem, individualmente.
O que é mais evidente na atualidade vem do mundo da moda. Dado dia os caras das empresas olham pra seus estoques, se reúnem e definem que no próximo verão todo mundo deve usar bege ou roxo. Chamam os estilistas, encomendam os modelos e bombam na mídia. De repente sua mãe tá de modelito roxo, sua irmã não sobrevive sem aquele tubinho roxo, a empregada se esfola pra pagar o último roxinho que sobrou na loja.
Mais engraçado é que a gente olha aquele tanto de gente de roxo e acha lindo. ‘Putz, como as mulheres ficam bem com esse padrão roxo que lançaram agora! Olha, que gata...’
Isso significa, no mínimo, que nosso conceito estético é algo absolutamente precário, volúvel, adaptável à ocasião. Se não, não existiriam as ondas da hora: todo mundo de chapinha; todo mundo com luz e franja; todo mundo com calças de cintura alta, ou baixa, boca de sino ou apertada... Todo mundo com peitão de silicone! ... Do estranhamento inicial ao deslumbre, todos, sob esse tal poder de coerção do grupo, mudamos num átimo.
Na música não é muito diferente. Num dado tempo todo mundo tem que pôr violoncelo nos arranjos... É lindo. Todo mundo tem que fazer um acústico, é demais. Todo mundo canta, enfim, essa última que fulano arrasou.
Numa sociedade de massas como a nossa, não nos assustamos mais ao vermos gente de todas as classes sociais do planeta imitando os passos de Michael Jackson dançando triller, todas as crianças de todos os bairros fazendo a mesma coreografia, todos os turistas seguindo o hit de macarena nos quatro cantos do mundo como se por isso dessem expressão a dado código de felicidade e descontração.
Muito antes desses fenômenos de uma sociedade dominada pela mídia, os efeitos do grupo sobre os indivíduos eram, também, muito evidentes, haja vista os estilos de época: agora, todo mundo faz poesia com métrica; agora, é o culto à donzela lânguida e inverossímil; agora, o mal do século, a dor de cotovelo, os poetas da penumbra e da tuberculose... Agora, verso livre.
Essa leitura rapidíssima e imprecisa nos serve, no mínimo, para vermos como o mercado se apropria desses fenômenos sociais e humanos, operando seus interesses. E como é ‘O Mercado’, faz pior, porque agrega a essa lógica da coerção do grupo as forças que habitam o mais íntimo de cada um, especialmente no que temos de pavor da morte, da perda, da castração.
A sacanagem do mercado é, primeiro, nos inundar com o mandamento de que apenas seremos lindos se usarmos o vestido da modelo loira deslumbrante, todo mundo igual, de roxo; segundo, que se não formos correndo à loja o tal modelo vai faltar, e o único desgraçado do mundo que vai ficar de fora é você. “Você corre o risco de ficar sem...” – esse o mantra a hipnotizar o incauto consumidor e obrigá-lo a pôr o dedo no fuso.
Nas corporações, esses fenômenos de grupo chegam a ser caricaturais. Os militares têm um estilo, se vestem de dado jeito, falam de uma maneira peculiar, cortam o cabelo assim. Os executivos, idem – ternos, balada, grana e pó; sedução, BMW, rolex. Há pessoas com olfato tão apurado que de longe detectam: aquele é polícia, esse advogado, a madame é funcionária pública, o cara é pagodeiro.
A cidade, a partir desse mecanismo da coerção do grupo sobre o indivíduo, acaba por se dividir em territórios tribais. Tem o pessoal de preto, de coturnos, capa, metal, numa euforia sem causa e sem conseqüências. Tem o pessoal das academias, bombados, exuberantes em seus corpos esculpidos e olhar vazio a procurar um espelho onde comparar bíceps e tríceps, quando não algum inimigo para esmagar. Tem os hippies, remanescentes de um nostálgico tempo de paz e amor e tão acossados por um comércio decadente e uma ética precária. Tem os do regae, com seus dredes-bandeiras, como a significar uma Jamaica imaginária, de uma devoção evangélica, meio que dominada por algum Edir Macedo. Tem, também, os que aceitaram Jesus, desarvoradamente, ao ponto de reduzir o vocabulário ao louvor maníaco, maniqueísta, manipulador e tão capaz de esvaziá-los numa catequese corrupta e mercantil. Tem os tatoos, com corpos-emblemas, como a fazer alguma história com marcas em si mesmos, no simulacro de um mundo-corpo, império do gozo, não raro a remeter ao bizarro.
Em meio a tudo isso, Eu, Você, cada Um. Todos, com a certeza de serem únicos, livres, detentores de uma identidade - “Pode crer, meurmão, tô na minha, eu sou mais eu...”
O homem oscila assim entre o si e o outro, ora fundindo-se, ora se fudendo. Na imersão grupal busca o conforto do pertencimento tribal, gregário, comunal. Na inquietude da procura de si, afasta-se do grupo e mergulha na dor do se parir no mundo, essencialmente marcando sua diferença.
É tão dramática e difícil essa construção que talvez só mesmo no exercício da reminiscência ela se viabilize, assim como o faz o Riobaldo, do Grande Sertão. Já distante das diabruras do bicho homem em grupo, consegue desenterrar o que foi, ele próprio. Talvez, por isso, a velhice tenha sido tão cara a alguns povos... lugar de sabedoria; tempo do ensimesmar.
Com certeza é tão essencial esse encontro identificatório com o grupo quanto a constituição de um território próprio. No entanto, e é isso o que os antropólogos e sociólogos acusam quando nos lembram o poder de coerção do grupo, - é que nesses movimentos em direção ao coletivo corre-se o risco de não se construir uma dicção própria. Isso se dá exatamente porque dado estatuto de grupo asfixia o sujeito e o oprime, inviabilizando sua procura de si.
O grande desafio, parece, é esse encontro que ao mesmo tempo permita a realização do grupo, o coletivo, comunal, mas cujas regras não sejam opressivas o suficiente para obscurecer o sujeito e seu desejo; o grupo cuja coerção signifique ao mesmo tempo esse processo identificatório dos iguais – da roupa, dos gostos, da dicção -, mas instigue à busca da diferença, da individualidade, e se possível do autoral.
Daí, mais uma vez a Casinha – enquanto espaço de grupo e de diferença, de coletivo e de individual, de igual na desigualdade. Uma poética do olhar para a multiplicidade e de dúvidas sobre a opressão. O lugar da não-asfixia e onde é imprescindível a suspeita: se estivermos muito iguais é porque algo deu errado, virou seita.
Nessa toada, cito Saramago em fragmento de O Conto da Ilha Desconhecida:

“... quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu, quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chega a saber quem és (...) O filósofo dizia que todo homem é uma ilha (...), que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos sairmos de nós...”

A Casinha, então, como o logus onde a tribo seja apenas um encontro de sujeitos.
Xuvito

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