quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Marginais à solta

Coleção traz de volta ao mercado filmes underground rodados no Brasil nos anos 1960 e 1970. O diretor mineiro Geraldo Veloso ressalta a influência do movimento sobre várias gerações

Walter Sebastião - EM Cultura





O diretor Geraldo Veloso diz que ele e os amigos eram godardianos de carteirinha, militantes políticos e fãs do experimentalismo
Delirante, melancólica, niilista, marginal, alternativa, underground. Qualquer adjetivo associado à arte de vanguarda serve para qualificar filmes realizados entre 1969 e os anos 1970, que, apesar de pouco vistos, fizeram muito barulho com seu experimentalismo estético. Passadas quatro décadas, não há consenso sobre o termo mais apropriado para definir o movimento, cuja marca é a rebelião contra a cinematografia convencional. A coleção Cinema marginal brasileiro, projeto da Lume Filmes e da Heco Produções, com apoio da Fundação Cinemateca Brasileira, disponibiliza alguns deles ao público.

“O cinema marginal tem autenticidade, veracidade e visceralidade que não se veem na produção brasileira de hoje”, afirma Eugênio Puppo, curador da coleção. Trata-se de filmes feitos por diretores que não contavam com financiamento oficial. Exibidos depois de muita briga, foram simplesmente proibidos ou destinados ao limbo, pois alguns passaram anos esquecidos. Todos rodados no ambiente hostil da ditadura militar. “A sociedade vivia situação calamitosa, com muita miséria. Eles encaram essa realidade de frente. É o Brasil sem maquiagem”, explica Puppo. De acordo com ele, o conjunto é original e singular, inclusive em relação ao realizado em outros países.

Em Minas Eugênio Puppo conta que a coleção comprova que cinema marginal não é fenômeno restrito ao Rio de Janeiro e a São Paulo, mas com realizações importantes na Bahia e em Minas Gerais. O curador cita trabalhos dos cineastas mineiros Geraldo Veloso, Sylvio Lanna e José Sette. O trabalho resulta de pesquisa feita há 11 anos, cujo passo inicial foi a mostra de 40 filmes, acompanhada de ciclo de debates, exposição e livro, realizada em São Paulo.

“Cinema é formação cultural, social, política e artística. Entretenimento é televisão”, provoca o curador, explicando que foi difícil localizar as fitas. Agora, é necessário providenciar a preservação do acervo e a restauração dos filmes.


Cena de Bang bang, filme de Andréa Tonacci rodado na Belo Horizonte dos anos de chumbo

Na coleção há um clássico do cinema marginal filmado em Belo Horizonte: Bang bang, de Andréa Tonacci. O diretor nasceu na Itália, morou em São Paulo e está radicado no Rio de Janeiro. Nos anos 1970, foi adotado pelos mineiros. “Sempre que posso, me refugio em Minas”, conta ele. “O filme exigia uma cidade moderna e descaracterizada, assim acabei em BH. Além de ela se adequar ao projeto, consegui na capital condições para fazer o filme”, lembra Tonacci. Os filmes do grupo eram espontâneos e simples, “sem a mania de ficar consertando tudo ou de querer ser Hollywood”. Ou seja, obras pessoais, com reflexões sobre a liberdade e a condição humana. “Para serem vistas mais com os sentidos do que com a razão”, defende o cineasta.

Tonacci afirma que o conjunto de realizações lança luz sobre caminho histórico do cinema, formado por obras baratas e poéticas. “Atualmente, há dezenas de filmes assim de jovens realizadores, produções facilitadas pelas novas tecnologias de captação de imagens”, explica.

JORNALISTA Perdidos e malditos, de 1971, do diretor mineiro Geraldo Veloso, vai integrar a coleção. Em 75 minutos, sem linearidade, a fita conta a história de jornalista da área policial que se casa com a filha de dono de jornal para subir na vida. “Obra pessoal, aproveita a dica da nouvelle vague: filme pequeno, rápido e independente”, resume Veloso, referindo-se ao movimento francês, cujas propostas de renovação do cinema influenciaram toda sua geração. A linguagem radical (há 25 planos de longa duração, alguns de oito minutos, com câmara imóvel) traz influência de dois demolidores de convenções: Jean-Marie Straub e Jean-Luc Godard.

Geraldo Veloso morou no Rio de Janeiro nos anos 1970 e conheceu de perto os militantes do cinema independente. O irmão, Tiago Veloso, foi fotógrafo de O anjo nasceu e de Matou a família e foi ao cinema, filmes-manifestos de Júlio Bressane. O mineiro Neville de Almeida, recém-chegado de Nova York, rodou, com roteiro de Jorge Mautner, o proibidíssimo Jardim de guerra (1968) e morou na casa de Veloso. “Dizem que o cinema marginal nasceu em São Paulo, mas ele vem é do Rio de Janeiro, da convivência de turma com afinidades intelectuais fortes. Todos cinéfilos, godardianos de carteirinha, muitos com atuação política e alguns já processados pela ditadura militar, vivendo processo de experimentalismo artístico”, explica. “São filmes confessionais”, completa Geraldo Veloso.

“Éramos jovens anarquistas libertários. Até romanticamente, não acreditávamos nos valores que nos eram apresentados”, afirma o diretor mineiro. A frase de Rogério Sganzerla – “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha” – traduz bem o espírito da época. “Fico feliz que, finalmente, haja interessados em nosso cinema. Influenciamos muita gente”, conclui Veloso.



CATÁLOGO
Os títulos da coleção Cinema Marginal são: Bang-bang (1971), de Andréa Tonacci; Sem essa, aranha (1970), de Rogério Sganzerla; Os monstros de Babaloo (1970), de Elyseu Visconti; Metereorango Kid, o herói intergalático (1969), de André Luiz de Oliveira. Os DVDs trazem o longa, curtas, depoimentos dos diretores e livreto com críticas, fichas técnicas, filmografia e ensaio sobre cinema marginal. As unidades custam de R$ 39,90 a R$ 44,90. Produto disponível no site www.lumefilmes.com.br.

Priscila Amoni

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